domingo, 3 de janeiro de 2021

Uma belíssima leitura

HUMANISMO OU FUTURO
 Semana passada, 540 animais mortos por 16 caçadores.
 Uma área murada de 1000 hectares.
 Se fizermos as contas: 1000 hectares a dividir por 550 a dividir por 16 obteremos mais ou menos o número da maldade.
 Há muitas maldades, a ementa é longuíssima, mas eis uma que dá conta certa e vómito.
 O muro tapa a fuga, o animal fica à força no recinto. 
Não se trata de pontaria, os animais são grandes e o tempo ilimitado. Trata-se de instinto macabro e inteiriço, posse de arma e bala — e ainda lei que fecha os olhos ao que é grande e abre muitíssimo a atenção fiscal ao pormenor.
 É preciso fiscalizar ou as estrelas que lá longe estão ou o insignificante que cá perto está. 
Animais agressivos como os lentos veados, esses, sem fiscal próximo, recebem as bem humanas balas.
 O humanismo está por todo o lado, ocupa o espaço inteiro e por vezes dispara.
 Pessoas que vêm de fora fazem testes para detectar um vírus.
 Imagino um país que faz testes na fronteira para detetar a ignorância.
 Aldeias antigas foram localizadas por um helicóptero recente na enorme selva amazónica. Datadas entre os anos 1300 e 1700.
 Estradas em linha recta uniam as pequenas aldeias. A recta já existia na densa floresta bem antes das modernas rectas de Manhattan.
 Um clube ganhou a outro 2-1, mas não conheço nem o valente nome do vencedor nem o triste nome do vencido. Para mim, o jogo ficou empatado.
 Uma vidente sentada na televisão pública ajeita os papéis A4 quadriculados onde o futuro está distribuído como se o tempo fosse uma horta com um eixo horizontal e outro vertical.
 Um vidente não vê evidências.


 UM VIDENTE NÃO VÊ EVIDÊNCIAS. VÊ, SE NECESSÁRIO, UM ESCURO VESTÍGIO NO MEIO DO ESCURO. É BEM DIFERENTE. UM VIDENTE QUE VÊ EVIDÊNCIAS DEVE SER DESPEDIDO POR JUSTA CAUSA 
 

Vê, se necessário, um escuro vestígio no meio do escuro. É bem diferente. Um vidente que vê evidências deve ser despedido por justa causa. 
Uma mulher grita à porta dos correios a dizer que estava primeiro do que uma outra mulher que estava caladinha a ver se o silêncio dos seus sapatos tornava os outros cegos por completo. Mas o pouco som dos sapatos nunca fez os outros cegos, a não ser que se esteja em plena escuridão, e não era o caso. 
O sol de Lisboa por vezes ilumina o rosto, outras vezes ilumina o movimento dos contrabandistas modestos que querem passar à frente numa loja dos CTT. Imagino de imediato uma mulher a gritar à porta dos correios o conteúdo da mensagem que iria enviar por carta. Quando os correios não funcionam, vai a mensagem de grito, de um para outro e depois para o outro a seguir, etc., etc., até chegar ao destino.

 Não aceites pedidos de casamento que cheguem por esta via de telefone estragado que toda a gente sabe que vai distorcendo a mensagem.
 Uma taróloga diz que o próximo ano vai ser bom e mau e ainda assim-assim. 
Escrever o que diz a taróloga bem taróloga no meu caderno de apontamentos como quem escreve uma receita de cozinha. 
Vai e não voltes a queimar o bolo.
 Vai e não voltes a cometer o mesmo erro.
 Eu vou para o novo ano com um caderno de instruções e dois cães que, à primeira distração, devoram o caderno de instruções.
 Vou ter de começar do zero ou voltar a ouvir a taróloga que acerta com nenhuma pontaria em lado nenhum. 
“2021 é excelente quando visto daqui. Mas tudo é maravilhoso quando visto ao longe.
” Mais um dia e outro e faremos o balanço. Nem para trás consigo prever.
 Os historiadores falham e nunca estão de acordo. A década começa agora ou foi antes?
 Ouvi uma vez uma taróloga que falava com precisão meticulosa da próxima década e depois disse que amanhã, quarta-feira, ela voltaria a falar no mesmo programa. Mas amanhã não era quarta. Era terça. Que ofereçam um calendário à taróloga. 
Um anúncio de um detergente para a roupa mostra resvés os glúteos de um senhor masculino que sempre que vai lavar a roupa esquece-se dos glúteos à mostra.
 Um dia de cada vez, ouve-se cada vez mais. Os mais velhos em dezembro de 2020 levantam o dedo indicador e pedem um dia apenas.
 Um outro e um outro, apenas.
 Em 2021, não sabemos o que vai acontecer, mas temos medo e expectativa.
Quanto a mim, a palavra futuro está completamente ultrapassada.


 Gonçalo M. Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia, na Revista E do Expresso