Beck, Ulrich (2012)
A Europa alemã. Novas paisagens de
poder sob o signo da crise
(Berlim: Suhrkamp Verlag)
Introdução: [9-11]
A Alemanha perante a decisão do ser ou não ser da
Europa
«Hoje, o parlamento federal alemão decide
o futuro da Grécia», ouço dizer, no fim de Fevereiro de 2012, nos noticiários
radiofónicos. Nesse dia tinha lugar uma votação acerca do segundo «pacote de
ajuda», associado a imposições de austeridade e a condições obrigando a Grécia
a aceitar ingerências na sua soberania orçamental. É claro que é assim mesmo,
diz uma voz, no interior do meu peito. A outra, porém, pergunta, sem poder
acreditar no que acabara de ouvir: Como é possível uma coisa destas? Mas afinal
o que significa que uma democracia decide, pela votação, o destino de uma outra
democracia? Bem, os Gregos precisam de dinheiro dos contribuints alemães. As
medidas de austeridade impostas, porém, equivalem a uma limitação do direito de
autodeterminação do povo grego.
Nessa altura, chocante era não só o
conteúdo da asserção, mas também a maneira como tal situação, na Alemanha, era
considerada perfeitamente normal. Escutemos isto, de novo, com mais atenção: o
parlamento alemão – e não o grego – decide o futuro da Grécia. Será que uma
coisa destas faz sentido?
Vamos fazer um pequeno
“Gedankenexperiment”, ou seja, usemos uma palavra alemã que não se costuma
traduzir e que significa algo como uma simulação mental de uma experiência.
Admitamos então que os Alemães iriam ser convidados a decidir, por votação, se
a Grécia, agora (portanto no Verão de 2012, quando este texto está a ser
elaborado), haveria de sair do euro. O resultado previsível seria: «Acrópole,
adeus!” – como se podia ler na capa da revista “Der Spiegel”. (2) Vamos ainda
admitir que os Gregos iriam ter que responder à mesma pergunta, num plebiscito.
O resultado provável teria sido uma clara maioria (segundo uma sondagem de Maio
de 2012, cerca de 85%) a favor da permanência no euro. (3)
Como iria ser possível resolver estas
discrepâncias nas decisões de democracias nacionais? Qual é a democracia que
leva a melhor? Com que direito? Com que legitimação democrática? Ou será que as
constrições económicas desempenham, aqui, um papel-chave? Será que, afinal, a
retenção de créditos constitui [10] a alavanca de poder decisiva? Ou a Grécia,
o país que inventou a democracia, perde, por causa do peso das suas dívidas,
possivelmente também o direito à
autodeterminação democrática?
Em que país, em que mundo, em que crise
estamos nós a viver... quando uma tal interdição democrática, levada a cabo por
outra democracia, não provoca o menor
escândalo? Neste processo, a fórmula «Hoje, o “Bundestag” decide o destino da
Grécia» peca por insuficiência. É que, aqui, já não se trata apenas da Grécia.
Trata-se da Europa. «Hoje, a Alemanha decide o ser ou não ser da Europa» – esta
frase é que exprime, com precisão, o estado da atual situação mental e política
do momento histórico que atravessamos.
A União Europeia tem 27 Estados membros, com
os Governos e Parlamentos respectivos, dispõe de um Parlamento próprio, de uma
Comissão, de um Tribunal, de uma encarregada de Negócios Estrangeiros, de um
Presidente da Comissão Europeia, de um Presidente do Conselho Europeu, etc.,
etc. Mas a crise financeira e do euro catapultou a Alemanha, com o seu poderio
económico, para a posição de grande potência decisiva da Europa. Em escassos
setenta anos, a Alemanha que, depois da Segunda Guerra mundial e do Holocausto,
estava de rastos, tanto moral como materialmente, passou de aluno aplicado para
mestre-escola da Europa. De acordo com a autocompreensão dos Alemães, a palavra
«poder», tanto ontem como hoje, continua a ser considerada palavra suja,
preferindo-se por isso substituí-la por «responsabilidade». Os interesses
nacionais ficam discretamente escondidos por detrás de grandes palavras como
«Europa», «paz», «cooperação» ou «estabilidade económica». Quem ousar
pronunciar a fórmula de poder da «Europa alemã» quebra este tabu. Seria ainda
muito pior dizer: a Alemanha assume a «chefia» da Europa, porque a palavra
alemã «Führung», para “chefia”, faz logo lembrar o «Führer» Adolfo Nazista, ou
o «duce» do fascismo italiano. (4) Por isso só se poderá dizer, de acordo com
este código eufemista alemão: a Alemanha assume «responsabilidade» pela Europa.
A crise da Europa, porém, está a
agudizar-se e a Alemanha vê-se colocada perante a decisão histórica de: ou
revitalizar, contra todas as resistências, a visão da Europa política; ou
manter, porém, a política do ir-se arranjando no meio da crise e da táctica
domesticadora da hesitação – e isto «até que o euro nos separe». A Alemanha
tornou-se demasiado poderosa para poder dar-se ao luxo de não tomar qualquer
decisão.
[11] Na esfera pública alemã, o facto de
ter chegado este «momento de decidir» é raras vezes mencionado, embora o seja,
e muito claramente, nos comentários de observadores estrangeiros. Por exemplo,
Eugenio Scalfari, jornalista e escritor italiano, argumenta da seguinte
maneira: «Se a Alemanha levar a cabo uma política financeira que conduza ao
fracasso do euro, então os Alemães terão que assumir a responsabilidade pelo
fracasso da Europa. Isto seria a sua quarta culpa, depois das duas guerras
mundiais e do Holocausto. A Alemanha tem que assumir, agora, a sua
responsabilidade para com a Europa.» (5)
Ninguém deverá ter dúvidas quanto a este
ponto: numa «Europa alemã», a Alemanha seria sempre responsabilizada pelo
fracasso do euro e da UE.
(Tradução de Jaime Ferreira da Silva, professor jubilado , Bochum)
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