CONSPIRAÇÃO CONTRA A AMERICA
A propósito da "irresistível ascensão de Donald Trump", têm surgido várias referências ao livro de Philip Roth "The Plot Against America" - de que existe uma edição em Português, "Conspiração contra a América" - o que me levou a relê-lo durante as últimas semanas.
Trata-se de uma ficção de história alternativa, isto é, uma narração que decorre num tempo em que, em relação ao nosso, ocorreu um ponto de divergência no curso da História, a maior parte das vezes um resultado diferente do que, realmente, aconteceu num momento decisivo; trata-se de imaginar o que seria o mundo nesse caso, quais as consequências desse (não) acontecimento.
Um artifício que, por exemplo, José Saramago usa de forma muito original e engenhosa n,"A História Do Cerco de Lisboa".
Philip Roth, utiliza a figura de Charles A. Lindbergh, um herói da aviação imensamente popular pelos seus feitos e também por outros aspectos da sua vida, como foi o caso do "bebé Lindbergh", o rapto e morte do em seu filho, que apaixonou o público americano durante anos e nunca ficou cabalmente esclarecido.
Lindbergh era também muito conhecido pelas suas posições políticas: radicalmente isolacionista, opunha-se à política de Roosevelt de apoio aos aliados e de preparação para a entrada na guerra; era, também, um nacionalista e exibia declaradas simpatias pelo nazismo. Foi ele, ainda, o criador e primeiro grande divulgador do slogan trumpista "America First", à volta do qual procurou criar um movimento populista que o apoiasse numa tentativa (falhada) de concorrer contra Franklin D. Roosevelt pelo Partido Republicano.
Na ficção de Philip Roth, Lindbergh derrota Roosevelt e, Presidente dos EUA, estabelece alianças com a Alemanha nazi e com o Japão, nomeia Henry Ford , cujo anti-semitismo desbragado era conhecido, como Secretário do Interior.e rodeia-se de colaboradores fascistas e pró-nazis.
O anti-semitismo, alimentado pelas acusações anti-judaicas de belicismo, de plutocracia e controlo da imprensa, prospera e os judeus são alvo de perseguições de milícias organizadas, assim como é dada rédea solta ao Ku Klux Klan, transformado numa associação "responsável".
O sistema evolui rapidamente para um "fascismo americano", embora o livro, de acordo com o fio condutor de toda a obra de Roth, se centre sobretudo nas relações raciais e no anti-semitismo.
Não me refiro mais ao desenvolvimento ficcional do livro, até porque acho que ele merece ser lido e não quero "estragar" o prazer do futuro leitor.
O livro foi publicado em 2004, quando começavam a ser evidentes os efeitos deletérios da globalização, do neo-liberalismo e do "pensamento único", da financeirização de economia e da política e da arrogância militar dos EUA.
A partir daí, a UE, umbiguista e sordidamente decadente, embrulhou-se no novelo da sua imparável destruição mas sem nunca admitir - como continua a suceder - as razões pelas quais isso sucede. Como se o proto-fascismo (ou o fascismo "tout court") que alcunham, pudica e hipocritamente de "populismo de direita", a falta de solidariedade, as grandes massas de excluídos e deixados ao deus-dará, sem comida e sem esperança, as crises financeiras e económicas, a forma como a Europa "farol da civilização" trata aqueles que, de fora, a veem como tal e a ela se dirigem, como se tudo isso, dizia, não tivesse causas, antecedentes e responsáveis e fosse algo de inexplicável, uma espécie de peste enviada por Deus, uma maldição incompreensível.
E, agora, descobre-se que também os EUA sofrem do mesmo mal. E que esse mal, como tudo nos EUA, é exponencialmente mais "grave", mais radical, mais perigoso para todo o Mundo.
Oito anos de Obama não mudaram grande coisa, pelos vistos. Se tivessem mudado, Trump seria uma impossibilidade. Em algumas coisas, como na política externa, nas relações internacionais e no plano militar, a era Obama até piorou as coisas.
Ao imaginar quão facilmente os EUA podem deslizar, quase imperceptivelmente, para o fascismo, Roth não estaria a pensar em Trump. Mas, certamente, apercebia-se das pulsões muito obscuras que estão, há muito, latentes na sociedade americana, do "ovo da serpente" prestes a eclodir, tal como acontece na Europa.
Ainda estamos a tempo, talvez Trump não transforme os seus seguidores em bandos "lumpen", milícias violentas e descontroladas, talvez não use as forças militares que diz querer retirar dos teatros de guerra para criar um estado policial doméstico. Penso que não chegaremos a isso. Mas, para não chegarmos a isso, é preciso fazer alguma coisa. Lá e cá.
E leiam "The Plot Against America".
22/1/201
Partilhado, por considerar magnifico e pertinente, do mural de Joao Russo Dias. Uma referência e reverência faceboquiana.
1 comentário:
Acho que vou ter de ler. Obrigada.
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