O novo coronavírus abriu uma época de Natal para os cleptocratas
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uito pouco se sabe sobre o novo coronavírus e nós somos apenas juízes, não somos profetas. No entanto, podemos prever com confiança que a resposta à pandemia será como uma época Natal para os cleptocratas — os líderes corruptos de muitas nações que ocupam os cargos que ocupam para se enriquecerem a si próprios e não para servirem os seus cidadãos.
Os governos estão prontos a injetar triliões de dólares para combater a pandemia em muitos países sem sequer as habituais, e muitas vezes ineficazes, salvaguardas para assegurar que os fundos são devidamente gastos. A experiência ensina que vai haver cleptocratas sem vergonha de aproveitar a oportunidade para enriquecerem ainda mais. Infelizmente, como resultado, o novo coronavírus fornecerá, portanto, mais uma prova convincente de que o mundo precisa urgentemente de um Tribunal Internacional Anticorrupção (International Anti-Corruption Court, ou IACC) para punir e dissuadir cleptocratas que gozam de impunidade nos países por eles governados.
A corrupção tem consequências devastadoras para a saúde humana. Como afirmou o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos em 2013, “a corrupção mata... A quantidade de dinheiro roubada através da corrupção é suficiente para alimentar 80 vezes todos os que têm fome no mundo... A corrupção nega-lhes o direito à alimentação e, em alguns casos, o seu direito à vida”.
A relação estreita entre a grande corrupção e os danos para a saúde humana é demonstrada de forma intensa pela experiência de Angola
Este ponto de vista foi validado por respostas dadas anteriormente a epidemias. Um terço dos fundos atribuídos em 2014 para combater o ébola na Serra Leoa não pôde ser contabilizado, embora alguns desses fundos acabassem por ser encontrados na conta bancária de um indivíduo envolvido no esforço. Do mesmo modo, em 2015, após já terem sido gastos 176 milhões de dólares, a Arábia Saudita suspendeu contratos no valor de 266 milhões de dólares para a prevenção da infeção pelo vírus MERS porque, devido à corrupção, o trabalho necessário não estava a ser feito.
A relação estreita entre a grande corrupção e os danos para a saúde humana é demonstrada de forma intensa pela experiência de Angola. O seu Presidente durante 38 anos, até 2017, foi José Eduardo dos Santos. Ele fez da sua filha Isabel líder da companhia petrolífera nacional e deu-lhe uma participação de controlo no negócio dos diamantes do Estado. Isto contribuiu para fazer de Isabel a mulher mais rica de África, com uma fortuna de mais de dois mil milhões de dólares. Ao mesmo tempo, Angola teve a maior percentagem de crianças de qualquer país do mundo que não sobrevivem até aos cinco anos de idade. Apesar dos valiosos recursos naturais e da riqueza de Angola, metade da população do país está, segundo Nicholas Kristof, do “New York Times”, “para além da órbita do sistema de saúde”. Não haverá tratamento para eles, assim que o novo coronavírus atingir Angola.
A grande corrupção não floresce em muitos países devido à falta de leis. Há 186 nações que são parte da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. Todas elas têm leis penais que proíbem a extorsão, o suborno, o branqueamento de capitais e a apropriação indevida de recursos nacionais. Têm também a obrigação internacional de aplicar essas leis, inclusive contra os seus líderes corruptos. No entanto, esses cleptocratas gozam de impunidade nos seus próprios países, porque controlam a polícia, os procuradores e os tribunais. Nunca irão permitir o julgamento e a punição das suas famílias, dos seus amigos e de si próprios.
Por conseguinte, um tribunal internacional, o AICC, é essencial para servir como instância judicial de último recurso, proporcionando um fórum para a aplicação da legislação nacional existente contra esses cleptocratas. O AIIC seria composto por investigadores especializados e receberia provas de empresas privadas, que são frequentemente utilizadas para localizar bens pilhados e ilícitos. Contrataria procuradores experientes no desenvolvimento e apresentação de casos internacionais e juízes com capacidade comprovada para presidir a processos penais complexos. Além de encarcerar cleptocratas, recuperaria os ganhos obtidos de forma ilegal em países que tenham aderido ao AICC.
Este tribunal, o AICC, funcionaria com base no princípio da complementaridade. Isto significa que o AICC só exerceria a sua autoridade para instaurar processos penais se um país fosse considerado incapaz ou não quisesse instaurar ele próprio processos penais contra os seus dirigentes. O tribunal incentivaria os países que são ou foram governados por cleptocratas a reforçar as suas próprias instituições e serviria de fonte de aconselhamento e assistência especializada.
No essencial, o AICC asseguraria que existe um tribunal em que os cleptocratas serão punidos. A prisão de líderes corruptos criará oportunidades para que sejam substituídos por funcionários honestos que se dedicam a servir os seus cidadãos. Também dissuadirá outros cleptocratas, tentados pela ganância, de cometerem crimes de corrupção. Um dos últimos atos de José Eduardo dos Santos, antes de deixar o cargo, foi dar imunidade de acusação à sua família e a si próprio. Como isto demonstra, os cleptocratas temem realmente ser punidos pelos seus crimes e, por conseguinte, são capazes de ser dissuadidos.
É cada vez mais reconhecido que uma ação arrojada e inovadora é essencial para combater a grande corrupção. A Assembleia Geral das Nações Unidas vai realizar uma Sessão Especial sobre a Corrupção em abril de 2021. Reconhecendo implicitamente que as atuais instituições e esforços são inadequados, criou há várias semanas um painel de peritos internacionais. A sua missão é encontrar melhores formas de combater a corrupção e devolver bens ilícitos aos países que deles necessitam desesperadamente para a saúde e o bem-estar dos seus cidadãos.
A proposta para a criação do AIIC está a ganhar apoio a um ritmo cada vez mais acelerado. A Colômbia e o Peru estão a liderar uma campanha internacional para que as Nações Unidas se comprometam a criar o tribunal na sua sessão especial de 2021. Entre os outros apoiantes contam-se um Prémio Nobel da Paz, membros do congresso dos Estados Unidos, importantes ONG e jovens corajosos cuja indignação perante a grande corrupção conseguiu que cleptocratas na Ucrânia e noutros países fossem expulsos.
Se a atual campanha não levar as Nações Unidas a comprometerem-se a criar o AICC, o tribunal poderia, tal como aconteceu com a proibição das minas terrestres, ser criado através de um tratado. Bastava para ser eficaz se, de início, aderissem ao tribunal cerca de 25 países relevantes, incluindo centros financeiros como a Suíça e Singapura, que são também centros de branqueamento de capitais.
É pena que o AICC não exista já, para poder dissuadir os cleptocratas de lucrarem com a pandemia do novo coronavírus. Quando os seus crimes acabarem por ser descobertos, a sua impunidade revelar-se-á intolerável e insustentável. Há, portanto, razões para esperar que uma das poucas coisas positivas a sair da pandemia seja a criação do AICC.
Mark L. Wolf é Juiz Distrital Sénior dos Estados Unidos no Massachusetts e Presidente da Integrity Initiatives International.
Richard J. Goldstone é juiz reformado do Tribunal Constitucional da África do Sul, ex-Procurador-Geral do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia e membro do conselho da organização Iniciativas de Integrity Initiatives International.
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