sábado, 30 de janeiro de 2021

"O Norte", crónica


O

Norte atlântico resiste mais ao Chega do que Lisboa e o Sul. Porquê? O ressentimento populista deriva da solidão familiar, da transformação do ser humano num átomo sem ligações familiares e comunitárias, sem bairro, sem fábrica, sem clube, sem igreja, sem família. No Sul e na Grande Lisboa, as pessoas sentem-se sozinhas, desamparadas, sem ligações familiares ou bairristas, e este vazio acaba por criar ressentimento, que agora tem uma expressão política. Sim, é difícil viver na Grande Lisboa, uma metrópole que destrói famílias com as suas distâncias geográficas e humanas. Sim, é difícil viver no Alentejo, e esta dificuldade sulista começa no estilhaçar da base familiar.

Está nos livros, meus caros: o sucesso populista tem por base o colapso da família. Todos os grandes livros sobre esta ascensão populista, “Uma Educação” (Bertrand) de Tara Westover, “Quem Matou o Meu Pai” (Elsinore) de Édouard Louis, “Regresso a Reims” (D. Quixote) de Didier Eriborn, e “Lamento de Uma América em Ruínas” (D. Quixote) de Vance, são também livros sobre o colapso familiar, tal como, se me permitem, o meu “Alentejo Prometido” (FFMS). Não por acaso, no Norte da família há menos mortos de idosos nos lares. 676 idosos do Norte morreram de covid na solidão dos lares; 1219 morreram em lares da Grande Lisboa. No Alentejo, morreram 305 em lares. Este, aliás, é o número mais revelador do Alentejo: com apenas 700 mil pessoas, o Alentejo tem três centenas de mortos em lares. Com 3 milhões e meio de pessoas, o Norte tem seis centenas. Estas diferenças falam por si, dizem-nos tudo sobre a imensa solidão que é a vida familiar no Alentejo e na Grande Lisboa. Quando entramos no Porto através da estação da Campanhã, sentimos logo que estamos noutro mundo, um mundo mais orgânico, com mais toque humano e familiar, um mundo onde é inconcebível a separação das três gerações, um mundo onde a avó marreca é passeada por netos e filhos.

Quando a poeira covídica assentar, é esta a grande lição civilizacional que temos pela frente: os velhos não podem ser largados em armazéns de pessoas

Quando a poeira covídica assentar, é esta a grande lição civilizacional que temos pela frente: os velhos não podem ser largados em armazéns de pessoas. As mortes em cadeia nos lares são a grande tragédia desta pandemia. Ao entrar num lar, o vírus tem ali um dominó de peças facilmente derrubáveis. No pós-pandemia, as cidades ultraindividualistas do Ocidente, representadas aqui por Lisboa, têm de aprender com as cidades mais familiares (Porto, Braga, Aveiro). As pessoas não podem continuar a viver para a sua conta do Instagram, têm de viver para os outros, para os seus próprios pais, avós e filhos. Sim, a vivência em cidade tem de mudar, tal como a organização arquitetónica das próprias casas. Os apartamentos da cidade têm de ser repensados para acolher mais pessoas além da família nuclear. A pandemia destapou de vez a nossa obsessão errada com o isolamento da família nuclear. Quando nos pensamos apenas neste quadrado fechado (mãe, pai, dois filhos), perdemos a capacidade comunitária para ter filhos e para cuidar dos velhos. É preciso uma aldeia para educar uma criança e para cuidar de um velho. Temos de saber criar esse velho espírito comunitário no coração das cidades. Devemos isso aos mortos covid e não covid destes dez meses.

Crónica de João Raposo, Expresso de ontem

 

1 comentário:

Graça Pires disse...

Uma boa semana, minha Amiga.
Cuida-te bem.
Um beijo.