domingo, 28 de outubro de 2012

Notícias do Jaime... (continuação). A Europa alemã. Novas paisagens de poder sob o signo da crise

Amigos, antes de lerem este texto, podem passar por AQUI..... ,texto que antecede este, na magnífica tradução de Jaime Ferreira da Silva, professor universitário jubilado, Bochum, Renânia, Alemanha.
A luta para derrotar o Merkeavelismo...
.(Ulrich Beck, fotografia)

O livro ser-vos-à apresentado até à tradução final....
Beck, Ulrich (2012)
A Europa alemã. Novas paisagens de poder sob o signo da crise
(Berlim: Suhrkamp Verlag)

I. Como a crise do euro dilacera a Europa – e como a liga [12-25]


1. A política de austeridade alemã divide a Europa: os Governos aprovam-na, as populações
    estão contra [12-15]

     Ao contrário de reinos e impérios históricos, cuja origem se encontra em mitos ou heróicas vitórias, a União Europeia nasceu da agonia da guerra e como resposta ao horror do Holocausto. Hoje é a ameaça existencial, provocada pela crise financeira e do euro, que faz  os Europeus cientes de que não vivem na Alemanha, França, Itália, etc., mas sim na Europa. E na medida em que a bancarrota do Estado, a crise económica e a decadência dos mercados de trabalho colidem com expectativas mais ambiciosas, como consequência da expansão do sistema educativo, a «geração da crise» experimenta também o seu destino europeu.
     Quase um em cada quatro Europeus, com menos de 25 anos, não encontra trabalho e, além disso, muitos vão sobrevivendo através de contratos de trabalho mal pago e a prazo. Na Irlanda e em Itália, cerca de um terço dos jovens com menos de 25 anos está, oficialmente, sem trabalho; na Grécia e em Espanha, em Junho de 2012, a taxa de desemprego dos jovens rondava os 53%, em cada um destes dois países. Na Grã-Bretanha, desde o início da crise financeira, em 2008, a taxa subiu de 15 para 22%. Em Tottenham, onde rebentaram os distúrbios, no ano de 2011, para cada lugar de trabalho há 57 candidatos. (6)
     Em toda a parte onde o precariado académico acampou e ergueu a voz, reivindica-se justiça social – uma reivindicação que em Espanha, Portugal, mas também na Tunísia, Egipto e Israel é feita sem violência, mas de forma veemente. A geração do facebook transporta este protesto, apoiada pela maioria da população dos respectivos países. A Europa e a sua geração jovem estão unidas na ira contra uma política que salva os bancos, com somas de dinheiro incalculáveis, mas que descura o futuro das gerações jovens.
     A crise e os programas para a salvação do euro deixam sobressair os contornos de uma outra Europa, de um continente dividido, [13] atravessado por novos fossos e fronteiras. Um destes fossos ocorre entre os países do Norte e os do Sul, entre Estados credores e Estados endividados. Uma outra fronteira separa os Estados da Zona Euro, obrigados a agir, dos membros da UE que não aderiram ao euro e, agora, têm de assistir, impotentes, por nelas não poderem participar, a tomadas de decisões-chave sobre o futuro da União. Uma terceira cisão fundamental sobressai das eleições nos países endividados, e vai ter consequências políticas duradouras: os governantes aprovam os pacotes de medidas de austeridade, e as populações votam contra. Torna-se visível, aqui, a tensão estrutural entre um projecto europeu que é apresentado e gerido, de cima, pelas elites político-económicas, e a resistência a ele, que vem de baixo. Os cidadãos defendem-se de uma impertinência, sentida como altamente injusta, recusando-se a tomar um remédio de efeitos provavelmente letais. Não só em Atenas, mas também em toda a parte, na Europa, está a formar-se um movimento de resistência a uma política de gestão da crise que – de acordo com o lema: socialismo de Estado para os ricos e os bancos, neoliberalismo para a classe média e os pobres – está a abrir caminho para levar a cabo uma nova repartição da riqueza de baixo para cima. O que fazem então os salvadores se os que devem ser salvos não querem que os salvem? Em todo o caso, não da maneira apresentada como sendo alegadamente «sem alternativa» pelos próprios Governos?
     Outro paradoxo: assistimos a debates apaixonados e a tremendas lutas de poder – e no fim de contas ficam todos a perder. Na Alemanha, as pessoas estão furiosas por «dinheiro dos contribuintes alemães» estar a ser desbaratado com «Gregos tesos», como se podia ler nas parangonas sensacionalistas do Bild-Zeitung, apelando para os baixos instintos dos leitores desse tablóide (neste trombone, porém, também tocou a revista Stern, consumida por outro público da classe média, com uma capa que, entretanto, assumiu uma lamentável notoriedade, mostrando a Afrodite de Milo de dedo médio em riste, fazendo um gesto obsceno). Nos Estados em crise, por sua vez, muitas pessoas consideram-se perdedoras, por a política de austeridade alemã-europeia lhes roubar as bases da sua existência – e, simultaneamente, também a sua dignidade. É assim que as populações, nos Estados membros da UE, são manipuladas e instigadas umas contra as outras, a este nível rasteiramente populista, sem se aperceberem de que elas todas, no seu conjunto, são vítimas da crise financeira e das insuficientes tentativas de a resolver. 
     [14] Portanto no futuro vai haver muitas Europas, na Europa. Uma delas é a Europa de baixo, a Europa dos cidadãos que talvez nem sequer saibam (ou não queiram saber) que são cidadãos europeus. Reside, aqui, um estado de espírito fatal, em que se misturam a insegurança, o receio e a indignação, e que se manifesta na fórmula: «Não estou a entender nada disto!» Crise dos bancos e crise financeira. A Europa em crise. O euro em crise – cada dia outra coisa nova – ou é tudo, afinal, o mesmo? Todos estão perplexos. E de certo modo desamparados. Em Agosto de 2011, o jornalista Holger Gertz escreveu o seguinte, numa grande reportagem acerca do receio e da confusão que reina na cabeça das pessoas: «É possível levar a cabo manifestações contra a guerra, contra a energia nuclear, e de comovedora clareza são estações de caminho de ferro ou pistas de aterragem já planeadas, pois também é perfeitamente possível organizar manifs contra elas.» «Mas contra a crise financeira?», e cita uma política de Berlim, do partido Die Linke. «O que é que se pode então escrever nos cartazes de uma manif dessas? Crise, vai pró raio que te parta?» (7)
     Como é que se pode perceber que já mais ninguém entenda seja o que for? Para encontrar resposta a esta pergunta, vou seguidamente retomar teses que desenvolvi na minha obra teórica Sociedade de Risco e aperfeiçoei, depois, em Sociedade de Risco Mundial. Este não-saber que se está a difundir, segundo a minha interpretação, é uma característica essencial de uma dinâmica a que estão expostas, no presente, as sociedades ocidentais. (8) A sociedade de risco é, em determinado sentido, também sempre uma sociedade do poderia ser. As centrais de energia nuclear, cuja complexa vida interna nós não compreendemos, poderiam avariar-se; os mercados financeiros, que até mesmo os “virtuosos” das especulações da bolsa parecem já não entender, poderiam entrar em colapso. Aqui, o modo condicional é um estado permanente: estamos constantemente a antecipar, hoje, catástrofes que, amanhã, poderiam vir a acontecer. Este modo condicional catastrófico irrompe, com violência, no meio de instituições e no dia-a-dia das pessoas – não se pode calcular com precisão, está-se nas tintas para a constituição e as regras democráticas, está carregado de um não-saber explosivo, e arrasta para o sorvedouro todos os pontos de orientação.
     Estas ameaças difusas instituem, ao mesmo tempo, algo como um sentimento de comunidade. Tomemos como exemplo a crise do euro: sociedades inteiras fazem a experiência comum de como, perante os programas de austeridade, no [15] elevador, são transportadas para um piso inferior. Em toda a Europa, uma geração inteira está a ser confrontada com o facto de ninguém precisar dela, se as curvas da bolsa apontarem para baixo, abruptamente. As consequências da crise não se detêm nas fronteiras nacionais, porque as imbricações, no âmbito da sociedade globalizada, já são muito estreitas. Então as pessoas perguntam-se: Se a Grécia cair na bancarrota, a minha pensão de reforma, na Alemanha, ainda está garantida? Mas afinal o que é que significa a «bancarrota de um Estado»? Que implicações é que ela tem para mim? O facto de serem precisamente os bancos – que, normalmente, protestam, com veemência, contra toda a intervenção do Estado – a pedirem ajuda a Estados endividados, e o facto de estes Estados, efectivamente, disponibilizarem somas astronómicas –, quem é que, ainda há poucos anos, seria capaz de pensar numa coisa destas? Hoje são todos capazes. O que não quer dizer, porém, que haja alguém que entenda isto. (9)
     Como está exposto na minha obra Sociedade de Risco, a expectativa, profundamente alojada no quotidiano, de uma catástrofe global, constitui uma das grandes formas de mobilização do nosso tempo. Este tipo de ameaça, percepcionada em todo o mundo, torna possível que se faça a experiência da relação, não raro aborrecida, que há entre a nossa própria vida e a vida de outros seres humanos, em outras regiões do mundo.              
        

Samba de Bênção - Vinicius de Moraes e Toquinho .... Bom domingo...