terça-feira, 14 de abril de 2020

Crónica e cronista sem reticências

XVI - Um amor de perdição
CONTACTOS
Camilo, que toda a gente julgara solteiro, afinal era viúvo. No Tribunal Eclesiástico tinha um processo por ter sido apanhado a saltar o muro do Convento de S. Bento quando tentava ir ao encontro de Isabel. Além de sua amante era a madre do Convento
C
amilo amava Ana. Ana amava Camilo. Ana era casada. Camilo tinha fama de sedutor e arruaceiro. Ana abandonou o marido rico, Pinheiro Alves, para ir viver com Camilo. No dia 1 de outubro de 1859 são acusados de adultério. Pela lei da época, a pena poderia ser o degredo para a esposa adúltera e seu amante. Acabaram os dois presos na cadeia da Relação do Porto. Ficaram lá mais de um ano. Ana, ao que se diz, a cantar de vez em quando árias da “Traviata”. Camilo a escrever. Em 15 dias concluiu o romance “Amor de Perdição”.

Sábado à tarde, com a cidade vazia, um pequeno e necessário passeio higiénico levou-me a passar pelo Jardim da Cordoaria. Em frente está a Cadeia da Relação, hoje Centro Português de Fotografia. Bem junto, a escultura de Camilo e Ana Plácido doada à cidade pelo escultor Francisco Simões. Chama-se “Amor de Perdição”, tal como o largo onde permanece o edifício onde estiveram presos os amantes.

<span class="creditofoto">Foto Lucília Monteiro</span>
FOTO LUCÍLIA MONTEIRO

Já no confinamento caseiro, não deixei de notar uma curiosa coincidência ao ler o artigo de Francisco Louçã no caderno de Economia do Expresso intitulado “Ricardo Jorge contra a peste bubónica no Porto”.
Acontece que Camilo Castelo Branco, Ana Plácido e o médico Ricardo Jorge constituíam um triângulo. Encontravam-se muitas vezes a meia dúzia de passos de minha casa, no nº 458 da rua de Stª Catarina, onde residia o escritor e família, bem junto à capela das Almas.
Atormentado com a doença e as dores, Camilo chegava a chamar Ricardo Jorge várias vezes ao dia. Por vezes, qual fantasma, aparecia-lhe em casa de madrugada, como escreveu o médico num texto publicado em 1931 no “Diário de Notícias” agora recuperado no livro “A mesa do senhor Bruno”, editado pela Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto.
Ricardo Jorge chegou a assumir funções de casamenteiro. Um dia disse mesmo a Camilo que, uma vez feito visconde, teria de haver uma viscondessa. Não faria sentido, dizia, continuar a apresentar a companheira apenas como Srª D. Ana Plácido.
Com ou sem dores, com ou sem sofrimento, o escritor tardava em ajustar uma data para o enlace. E quando isso aconteceu, tratar dos papéis foi um tormento. Camilo, que toda a gente julgara solteiro, afinal era viúvo. No Tribunal Eclesiástico tinha um processo por ter sido apanhado a saltar o muro da cerca do Convento de S. Bento (onde está agora a estação ferroviária) quando tentava ir ao encontro de Isabel. Além de ser sua amante, era a madre do Convento.
Ricardo Jorge dá conta de múltiplos e enervantes avanços e recuos neste casa descasa, até que um dia, uma vez mais chamado à razão pelo médico, Camilo proclama: “faça-se o casamento.”
Antes que se arrependesse o escritor, alguém vai chamar o padre. Fazem-se as rezas e as bênçãos necessárias e, no final, os nubentes trocam um beijo.
Camilo estava perto do fim da vida. Como o próprio dizia, encontrava-se já de pés à cova. Casaram-se no dia 9 de março de 1888. Tiveram dois filhos. Atormentado pela cegueira progressiva, pelas dores, tudo decorrente da sífilis que há muitos anos dele se apoderara, Camilo suicida-se com um tiro na cabeça no dia 1 de junho de 1890, na casa de S. Miguel de Seide, em Famalicão.
Ana Plácido sempre lhe merecera grande cuidado e preocupação. Já muito perto da morte, Camilo dedica-lhe um soneto, cujo remate só pode ser entendido como uma súmula das penas, tormentos e contradições vividas naquele amor de perdição:
Em grande amor te dei grande amargura...
Fui teu verdugo, mas verdugo amando-te.

Hoje dou-vos um verso



Foi contigo que aprendi a amar
desordenadamente.

Eduardo Pitta (Foi contigo que aprendi a cidade )

Aguarela de Carl Larsson