sexta-feira, 28 de outubro de 2016

"Ontem nao morreu um homem, no entanto...."



  1. POR VALDEMAR CRUZ
  2. Jornalista
  3.  
  4. 28 de Outubro de 2016
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  6. A morte é uma certeza sem remissão e o tempo um grande mistério
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  8. Ontem morreu um homem. Ontem esmoreceu para sempre uma partícula do nosso saber científico. Ontem pereceu uma ideia de cultura humanista centrada no conhecimento como um todo capaz de nos definir como espécie. Ontem começou o adeus a uma memória, com a certeza de que nunca nos despedimos de quanto congrega em si uma ideia de perenidade. Ontem morreu o neurocirurgião João Lobo Antunes. Tinha 72 anos de idade e lutava há vários anos contra um cancro de pele. Vencedor do Prémio Pessoa em 1996, atribuído pelo jornal Expresso, era o atual presidente da Comissão Nacional de Ética da Fundação Champalimaud. Foi o primeiro cirurgião a implantar um olho eletrónico num invisual. Era curioso por definição, por desejo, por estado de espírito, por maneira de ser.

  9. A vida, a vida toda, mesma a vida política, não lhe era indiferente. Não podia ser. Não desistia das suas convicções. Não deixava amarrar-se a conceitos estabelecidos. Não se perdia no emaranhado de propostas e soluções. Tinha ideias muito próprias. Algumas muito singulares. Tinha convicções. Tinha dúvidas. Muitas dúvidas. O duvidar era uma forma outra de existir. Gostava de olhar para as pessoas para lá da película envolvente da superfície. Lamentava-se de ter a vida conseguido chupar-lhe o tempo. E, no entanto, tantos tempos ficam plasmados na vida de um homem que não desdenhou abraçar instantes políticos diversos. Mesmo se contraditórios. Como ser mandatário da candidatura presidencial de Jorge Sampaio em 2011 e das duas candidaturas de Aníbal Cavaco Silva. Sendo um homem de ciência, era antes de mais alguém disponível para se fundir no prazer lúdico das palavras. Da palavra. Na introdução à entrevista que lhe fez em dezembro passado, a Luciana Leiderfarb escrevia que João Lobo Antunes “é um médico de palavras e um dos maiores cirurgiões do mundo, um homem que jamais foge a uma pergunta, um professor, um ativo humanista e um ex-conselheiro de Estado, e mesmo assim, como generosamente afirma, um filho ‘derrotado’ pelo pai”. Quando começou como médico, queria salvar vidas. Chegou a pensar que a morte constituía uma derrota pessoal. Mais tarde, e na senda de Fernando Gil, percebeu que a morte é uma certeza sem remissão e o tempo um grande mistério.

  10. Ontem morreu um homem. Quando tudo se esfuma, a homenagem maior não está contida em nenhuma palavra, em nenhum discurso, em nenhuma lágrima. Se ainda há espaço para lágrimas.
  11. Quando tudo se esfuma, a homenagem maior não está na ténue linha divisória do ser ou do estar, mas antes na consagração do que fica.

  12. Ontem morreu um homem. E, no entanto, sabemos que ontem, um homem não morreu.


Jornal Expresso

Fotografia de Alfredo Cunha


(Férias ,  nao é  interromper a vida , mas tambem estar atento,  se for esse o desejo,  ao que acontece do outro lado do Atlântico .  Não  há  sol e chove .  )