quarta-feira, 15 de outubro de 2014

por mares nem sempre "navegados"...

SEDE EM QUE ARDEMOS...


Nada é começo na contabilidade das horas
Nem o rugido das esferas é vibração do cristal
Nem os passos são a devoção dos dias
Nem as ondas-cavas são destino de barcos...

Administramos silêncios.
E os dedos são compasso de um círculo
Que se ferra no pescoço dos náufragos
E asfixia o grito. E devora por dentro num fervor negro
Como bolor em pão ázimo
De porta em porta
Negado...

Somos leilão de condenados.
Sem o sabermos. Que nem o preço ao menos
Nos distingue na volúpia do deve – e do haver!
Nem o festim das coisas que esventram os olhos
Nem a náusea nos redime
Nesta voragem...

Libertos apenas talvez na palavra que teima
E no bruxuleante lume da candeia
A iluminar a gruta. E no granito
Fogo e água tímida a soletrar
A sede em que ardemos.


Manuel Veiga
Ilustração de Ana Biscaia