terça-feira, 29 de outubro de 2019

"um Seat Málaga antigo"



 Manuel Vilas, que escreveu este “Em Tudo Havia Beleza” de onde vem a citação, tem histórias melhores que a minha mas sem segundas oportunidades - publicou um diário violento e não ficcionado sobre o desamparo irreparável que é a morte de uma das fontes de tudo, um pai, o meu pai, o seu pai, do pai que se ama incondicionalmente mas que condiciona a nossa maneira de amar, e de um filho, você, eu, que descobre no próprio carácter o carácter do pai:

“Um dia o meu pai deixou de se preocupar com o seu carro, um Seat Málaga antigo. Sempre se angustiara obsessivamente com o seu carro, com cuidar dele, com tê-lo sempre em perfeito estado. Abandonou-o numa garagem e deixou de conduzir. Fui eu próprio ver o carro, e estava cheio de pó. Disse-lhe: ‘Papá, o carro está cheio de pó’.
Olhou para mim, e parecia que isto sim lhe causava mossa.
‘Era um bom carro, faz o que quiseres com ele’, disse-me.
Ao desligar-se do seu carro, percebi que o meu pai ia morrer em breve; percebi que aquilo era o fim.
Foi um dos momentos mais tristes da minha vida, o meu pai estava a dizer-me adeus por interposta máquina.
Em vez de me dizer ‘temos de falar, isto está para acabar’, disse-me ‘era um bom carro’. Meu Deus, que maravilha. Viesse de onde viesse o espírito do meu pai, estava tocado pelo dom da elegância, pelo dom do inesperado, pela ingénua originalidade.
Pelo estilo.
Sentei-me numa cadeira da cozinha e fiquei a olhar para ele. Fiquei muito nervoso. Muito angustiado. Só eu em todo o universo sabia o que significavam aquelas palavras, ‘faz o que quiseres com ele’.
Estava a dizer-me algo devastador: ‘Faz o que quiseres comigo, não percebo o teu amor’.
Não percebo o teu amor.
Não te amei o suficiente, nem tu a mim.
Fomos malditamente iguais”.

Mas ser maldito é uma honra, não sê-lo também:

“O meu pai morreu com setenta e cinco anos, viverei eu mais anos do que o meu pai? Estou convencido de que viverei menos, ou talvez precisamente os mesmos anos: setenta e cinco. Mas acho que não, que partirei antes. Parece-me uma descortesia vivermos mais anos do que o nosso pai viveu. Uma deslealdade. Uma blasfémia. Um erro cósmico. Se vivermos mais anos do que os que viveu o nosso pai, deixamos de ser filhos, é a isso que me refiro. E, se deixarmos de ser filhos, somos nada”.

Pai e mãe: se os seus ainda estão vivos, e que vivam para sempre, torne-se repórter da sua família e pratique jornalismo da intimidade - pergunte-lhes o que não sabe da vida deles, faça-o hoje, daqui a pouco, agora, já, pode ser jornalismo de investigação, “mãe, o que é que lamentas nunca ter feito?”; pergunte-lhes o que não sabe das descobertas deles, pode ser jornalismo musical, “pai, when love is gone, where does it go?”. A informação aqui não é poder, é afeto. Pai e mãe: se perdeu um ou os dois, torne-se romancista, imagine grandes acontecimentos, paixões, amores, desgostos, erros, conquistas, fábulas, tragédias, contrições e contradições na existência deles. A imaginação aqui não é mais importante que o conhecimento, é saudade. Somos tantas vezes tão pouco curiosos sobre eles e que erro isso é e arrependimento será, eu sou um arrependido e o Manuel Vilas igual: “A morte dos nossos pais é abjeta, é uma declaração de guerra que a realidade nos faz. (...) Enfim, seja como for, a única coisa óbvia é que, se tiveres de perguntar algo a alguém, fá-lo logo. Não esperes por amanhã, porque o amanhã é dos mortos”. E não costumam ressuscitar como o meu Bruno.

Cronica de hoje , no Expresso Curto, de Germano de Almeida, a propósito da morte de um amigo de infância, o Bruno, que o deixou aos 10 anos. 
Da leitura que anda a fazer, Germano,  deixou esta bela e triste prosa. 
Vida e morte.