domingo, 29 de março de 2015

UMA CRIANÇA DISSE - Herberto Helder (2)

(...) 
 As orelhas das crianças servem para as pedras serem pedras que ouvem. Pedras plurais.
  Os livros com crianças delirantes, as paisagens na voz.
   Crianças são as letras antigas com que se escreve a única palavra insuportavelmente viva. 

Uma criança disse: "Olha a minha sombra natural exactamente branca".
   A mesma: "Era um campo decisivo, assim como uma casa cheia de lobos." E contou a seguir uma história em que tudo tinha a cor verde, desde as pessoas aos animais e objectos. O próprio ar era verde.
As crianças são uma verdade impraticável.
As crianças começam a construir, tijolo a tijolo, suas mães monumentais. Depois partem para os pensamentos como para uma ascendente morte e aos degraus.
  Uma criança disse: "Dá-me aquele ramo de estrelas maduras". 
  A solidão que traspassa uma criança imóvel é uma luz insuportavelmente branca.
  Às vezes as crianças não falam quando estão dentro do silêncio.

As crianças falam até ao fim de cada palavra.
A morte das crianças é uma fogueira ao lado direito de Deus, fogueira onde Deus aquece as mãos.
Aprenderei no sono as submersas crianças mudas, envoltas no sangue.
Uma pedra sob a luz infantil. E a palavra Pedra treme de terror.
A vida das crianças reforma os meses que sonham os meses. Elas entram nos meses e envenenam-lhes o espírito dos meses. E os meses rolam, cantadores, para dentro de uma terrível eternidade.
As crianças alimentam a solidão da terra.
A existência das crianças cresce contra roseiras azuis, e toma seu azul, e fala depois esse obscuro idioma do azul
As crianças param no meio das folhas. Destroem o jardim numérico.
As crianças ultrapassam a idade que as ultrapassa a elas.

As crianças são o instante onde as liras e os dedos são uma única rosa.

Poesia
Plátano Editora
Lisboa, 1973
in, A infância lembrada, recolha de Matilde Rosa Araújo(Livros Horizonte)