terça-feira, 19 de maio de 2020

"os países são como as camas. Existem muito antes de, sobre eles, se estenderem lençóis "

  A cama e o como


 Recordo a  minha mãe, logo pela manhã, chamando-me para ajudar a « fazer a cama ». E lembro a minha estranheza:
   - Fazer a cama? Mas ela já não está feita?
    Para a minha mãe era bem claro: uma cama só existia se nela estivessem bem estendidos os lençóis e as cobertas. Até então a cama estava «desfeita». Não existia . E o resto era conversa de um filho preguiçoso. 
   Ainda hoje mantenho a mesma estranheza. Porque a expressão «fazer a cama» esconde algo que é essencial. Por debaixo da colcha é que está a verdade da cama. Por debaixo da aparência, está a obra de um anónimo carpinteiro ou de um desconhecido serralheiro. A linguagem  tem muitas vezes esse poder: mostra a construção e esconde a mão do construtor.
   Este encobrimento é comum. Contudo, no caso da cama, essa ocultação é mais do que injusta.  Porque nenhum outro objecto nos acompanha tanto e por tão longo tempo. Nascemos e morremos quase sempre sobre um leito. Grande parte da nossa vida é passada sobre uma cama. Apesar disso, não damos conta da sua existência . A sua presença só se adivinha pelo ranger da tábua, pelo chiar da mola ou pelo desconforto do colchão. A cama é como o nosso próprio corpo. Só
o sentimos quando nos dói.

Excerto de um conto de Mia Couto do livro , o universo num grão de areia