segunda-feira, 3 de abril de 2023

Ryuichi Sakamoto - 1952-2023




 

"Ouvimos e lemos sempre coisas sobre a “universalidade” de um artista. Sobre Sakamoto também já ouvimos esse jargão. Mas isso quer dizer o quê em concreto? Em relação a Sakamoto, quer dizer que ele ilustra sentimentos humanos na sua forma mais simples e pura e com uma linguagem que é captada por qualquer ser humano. Podes ser japonês, português ou etíope, mas vais sentir as emoções de Sakamoto. Ou seja, esta universalidade é um sério problema para os relativistas que acham que cada ser humano é só o seu contexto.

No caso de Sakamoto, esta universalidade tem ainda um ponto adicional. O compositor japonês ilustra a alegria e o terror no mesmo tom calmo, pausado, cool; um tom que faz lembrar o nosso Rodrigo Leão, o músico português mais parecido com Sakamoto. Se não me engano, trabalharam juntos numa faixa de um álbum já com 20 anos de Leão.

De resto, Sakamoto e outros compositores como o nosso Rodrigo Leão mostram que o maestro Martim Sousa Tavares tem razão quando diz que a música clássica não é tão complicada como se diz e que está mais democratizada do que se pensa – devido sobretudo às bandas sonoras dos filmes e das séries. Se eu quiser ilustrar o medo perante o coração das trevas - quer do homem quer da natureza -, talvez escolha o tema central do “The Revenant”, um vórtice de terror que nos puxa para baixo. É um vórtice que atravessa diferenças de idade, nacionalidade e educação. Na faculdade ou na taberna, todos sentem o mesmo. Se eu quiser uma peça para ilustrar a alegria, talvez escolha o “Merry Christmas, Mr Lawrence”, uma força ascendente que nos eleva nos ares num redemoinho que cheira a amor.

Quando me dizem que Beethoven ou Sakamoto são demasiado complexos, eu não percebo a alegação, porque estamos num campo simples, básico e universal. Aliás, eu inverto a alegação, dizendo que muitas vezes o universo pop é que tem músicas indecifráveis. São as palavras e as letras que tornam – a meu ver – muitas músicas impenetráveis, porque estão cheias de códigos relativos a um tempo, a um grupo, a uma tribo. Já a música clássica é só som. É mais simples. Pode exigir, digamos, mais coragem ou frontalidade, porque exige do ouvinte uma certa nudez, exige que se deixe penduradas as palavras e conversetas usadas no dia a dia. Mas não é mais difícil."


Excerto de crónicas de Henrique Raposo, Expresso Diário de 3 de Abril de 2023