quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Auto do desempregado, de Baptista-Bastos



"Deixa-me ver as horas. Este relógio foi- -me por ela oferecido, quando fiz 45 anos, há mês e meio. Nessa altura já havia rumores, no escritório, de que as coisas não caminhavam bem, gente a mais, encomendas a menos. Nada lhe disse. Apenas boatos; no entanto, começámos a olhar uns para os outros, aquele é mais velho, quantos anos tem ele de casa?, 30, ena, pá!, e de idade?, ena pá! Sou mais novo. Mas há mais novos do que eu. E se pintasse um pouco o cabelo? As brancas dão-me um aspecto mais pesado. Apesar de tudo, tenho fé. Mas manter a fé é difícil, tendo em conta o que por aí se vê. Tenho vergonha de vaguear pela cidade. Tenho vergonha de dizer em casa que fui despedido, "dispensado temporariamente", como me informou a menina da administração, examinando-me com a pesada compaixão de quem nada sabe sobre dor e sofrimento. Tenho vergonha de ser reconhecido por algum vizinho. Tenho vergonha de nada ter para fazer. Tenho vergonha de ainda não ter a coragem de revelar à minha mulher a situação em que me encontro. Tenho vergonha de admitir que não voltarei a arranjar trabalho. Tenho vergonha de ter de me inscrever no Desemprego. Tenho vergonha de ter desejado que fossem outros os nomeados para ir para a rua.Tenho vergonha de ser quem sou. Tenho vergonha de ser velho. "Excerto da cronica de B. B no Diário de Noticias de 25.02.o9

3 comentários:

Vladimir disse...

Um texto muito a propósito dos tempos que correm.

samuel disse...

Brutal!

Riscos e Rabiscos disse...

pesado... ufa... mas contemporâneo, sem dúvida, muito a propósito do panorama mundial!