terça-feira, 2 de junho de 2020

“- Não te preocupes. Eu tenho trissomia 21, não tenho Covid.”

Que ninguém se sinta obrigado, mas leiam. "Diários da Peste", de Gonçalo M. Tavares, é do melhor que por aí há de leitura, no Expresso Diário.

Diário da Peste
1 de Junho
É evidente: quem respira está a resistir.
Uma ilegalidade, quase um crime.
Uma pedra, por exemplo, aceita a imobilidade de forma pacata.
Uma praticamente cidadã exemplar.
"Trump refere-se a tumultos como um "crime contra Deus" e ameaça chamar as Forças Armadas para as ruas".
Flexão ou extensão: o corpo expande-se ou esconde-se.
Nenhum humano tem sempre o mesmo tamanho.
Cidade vasta, feita de muitas coisas; umas paradas e sem pulmões.
Outras cheias de pulmões e palavras.
"Trump sai da igreja e posa para as câmaras com uma Bíblia na mão".
Detidos vários, montras partidas e assaltos; violência e protestos.
Este verso de Paul Bowles:
“The final rain kills the remaining trees”.
Ir para a chuva final com a Bíblia na mão.
Travar a chuva e os confrontos com a Bíblia e muito gás lacrimogéneo.
Se não vai a bem, vai a mal. Palavras, balas ou gás.
Em vez de fazer ver os cegos, tapar por um tempo o necessário movimento dos olhos.
Gás lacrimogéneo e balas de borracha: um gás que quase cega e uma bala que quase mata.
Trevor Noah fala da quebra de contrato entre a sociedade americana e os negros. Nina Simone canta I Got Life.
“Não tenho casa, não tenho sapatos Não tenho dinheiro, não tenho classe Não tenho saias, não tenho casacos Não tenho perfume, não tenho amor Não tenho fé”.
A fé, sempre. Bíblia de um lado, música e dança também.
Ouvi pela primeira vez esta música no filme Hair.
Não tinha idade para ver.
No cinema não me queriam deixar entrar porque umas mamas apareciam no meio da marijuana.
No meio da marijuana e da música.
A maturidade específica dos olhos, uma ideia a estudar.
Respondi que só tinha ouvidos e olfacto; visão quase nada, quase lusco-fusco. Deixaram-me entrar.
Uma amiga, 1 de Junho de 2020.
Trabalha com pessoas com dificuldades mentais. Mensagem:
“Hoje foi o recomeço com os alunos. Não nos víamos há dois meses.”
“Muitos olhos tristes. Muitos a controlar a vontade de nos abraçarem. Hoje foi um dia difícil.”
Nina Simone:
“Tenho o meu cabelo, tenho a minha cabeça Tenho o meu cérebro, tenho as minhas orelhas Tenho os meus olhos, tenho o meu nariz Tenho a minha boca.” Depois a minha amiga contou ainda:
“Um dos meus alunos (25 anos) chegou perto de mim e disse:
- Queres ir ali atrás?
- Fazer o quê? Perguntou ela.
- Quero dar-te um beijinho sem ninguém ver.”
Ela explicou-lhe que não podiam quebrar esse tipo de regras.
“- Não te preocupes. Eu tenho trissomia 21, não tenho Covid.”
Foi isso que ele disse. Tem 25 anos. Tem trissomia 21, não tem Covid.
Há problemas que vêm com a tosse e com o vento, e há problemas que vêm de trás.
Nina Simone canta e o número de mortes continua a descer em Itália e Espanha.
Os tempos são quase felizes, os tempos são quase tristes.

1 comentário:

Graça Pires disse...

Magnífico texto!
Uma boa semana com muita saúde.
Um beijo.